26 de novembro de 2010

UPP: segregação urbana, criminalização da resistência popular eviolência policial

Antônio Carlos de Carvalho
publicado no site do CeCAC emsetembro de 2010.

As grandes cidades brasileiras são um retrato da luta cotidiana dopovo pela sobrevivência: moradias precárias nos morros e nasperiferias, transporte coletivo caro, inadequado e insuficiente, faltade saneamento básico, hospitais sucateados, escolas públicasdesvalorizadas e salários baixos, desemprego e oportunidades detrabalho na sua maioria precarizadas ou de baixa remuneração.

Nessas condições adversas, milhões de trabalhadores lutam diariamente, saemde casa de manhã, muitas vezes sem saber com quem deixar seus filhos,se conseguirão um emprego, se continuarão empregados no dia seguinte.Ou ainda, se suas mercadorias serão apreendidas, se terão como pagarsuas contas, se poderão fazer supermercado – pois o salário do mês,comprometido com as dívidas, logo acaba – e se, quando voltarem, suarua vai estar alagada.

Apesar da grande quantidade de riqueza que circula na cidade, amaioria da população que trabalha para produzir essa riqueza está cadavez mais distante de se apropriar dos frutos de seu trabalho. A cidade é um reflexo da grande máquina capitalista de desigualdade e deexploração, em que cada centímetro tem um preço, um poder, uma hierarquia.

A produção e a reprodução das desigualdades são diárias, e ocorre por vias econômicas e políticas, através da ideologia e tambémda força. A recente política de ocupação policial das favelas do Rio de Janeiro,cujo símbolo maior é a “Unidade de Polícia Pacificadora” (UPP), é uma expressão concreta da produção capitalista das desigualdades urbanas do Brasil. Podemos identificar isso pelos efeitos da segregação econômica (“expulsão branca”, especulação imobiliária, periferizaçãoda pobreza), pelas medidas políticas de controle (colocação de muros,criminalização dos movimentos sociais), pela “lavagem cerebral” dagrande mídia que procura construir um consenso em torno dos supostosbenefícios das UPPs e pela violência policial contra os trabalhadores.

O que se percebe nas áreas escolhidas para a implantação das UPPs é que, para a população que ali vive, a presença do Estado secircunscreve a uma estratégia de controle social, não visando a açõesou políticas efetivas de garantia de direitos como saúde, educação,acesso a saneamento etc.   As faces da segregação urbana A ocupação policial das favelas e a instalação das UPPs são um projetoque se integra com a revitalização de áreas tidas como degradadas(caso da Zona Portuária), os empreendimentos urbanos voltados para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas (concentrados na Barra da Tijuca,na Zona Sul e na Grande Tijuca) e a valorização do mercado imobiliáriocarioca. As ocupações policiais têm como objetivo “limpar” a área nobre da cidade para garantir que as melhorias urbanas introduzidaspelo estado possam ser apropriadas pelas classes dominantes e algumasparcelas das camadas médias, os setores mais ricos da população.

 O Rio de Janeiro se caracterizou ao longo de sua história por uma paisagem peculiar: nos bairros mais ricos da cidade existem morros queforam ocupados pelos trabalhadores urbanos, locais de infraestrutura precária ao lado das áreas que concentram os investimentos públicos eprivados. Mesmo na Zona Sul, na Grande Tijuca e no Centro, o povo resistiu às tentativas de remoção para as áreas periféricas, distantes da oferta de empregos na cidade. Apesar do discurso que considerava a favela um lugar de marginalidade e exclusão, as favelas cresceram integradas à cidade porque nelas moravam os trabalhadores cujos baixos salários, o subemprego e desemprego, não permitiam o acesso a moradias com melhor infraestrutura.

E tem sido assim até hoje, mesmo com inúmeras tentativas – concretizadas ou não – de remoção das favelasdos bairros ricos da cidade. A introdução das UPPs surgiu juntamente com o retorno das políticas deremoção – abandonadas desde a época da ditadura militar, quereaparecem sob a forma de condenação de áreas de risco –, a colocaçãode muros cercando as favelas – com justificativa ecológica – e oschamados “choques de ordem”. Essas políticas são complementares e temcomo objetivo comum acentuar a segregação sócio-espacial da cidade doRio de Janeiro, garantindo os lucros para as classes exploradoras quevão se beneficiar das ações do Estado e expulsando a população pobreque não tem como pagar para viver bem.   Muros para formar guetos Em 2009, o governo do Estado do Rio apresentou um projeto para aconstrução de 11 mil metros de muros, com 3m de altura, com o custototal de R$ 40 milhões. Apesar do argumento ecológico de que os murossão ecolimites para conter a expansão das favelas sobre as áreasverdes das encostas, o que chama atenção é que a maior parte dos murosestá sendo colocada na Zona Sul, onde a expansão de favelas não chegouà metade do aferido na Zona Oeste, de 11,5% (dados do InstitutoPereira Passos). No Santa Marta, primeiro morro onde os muros foraminstalados, foi registrado um decréscimo de 1% na área ocupada. Alémdisso, dados também do IPP indicam que a maior parte da área ocupadairregularmente nas encostas corresponde a casas das camadas maisabastadas, não a favelas1. Na Linha Vermelha também colocaram muros separando a favela daautopista, com o argumento de impedir a propagação de som para osmoradores da Maré. O “efeito colateral” dos muros é retirar a imagemda favela do campo de visão dos carros que atravessam a LinhaVermelha. No morro Santa Marta, as fachadas das casas viradas para arua principal de Botafogo foram pintadas para produzir um efeitovisual estético para quem vê a favela de fora, mesmo sem a consultaprévia da maioria dos moradores cujas casas foram pintadas. Apesar dos pretextos apresentados para legitimar a colocação dosmuros, essas medidas são mais uma forma simbólica e violenta deconcretizar a segregação e a tendência à formação de guetos urbanospara a população pobre da cidade. Em vez de resolver os problemasestruturais das favelas, buscam apenas melhorar a fachada e tapar osolhos da cidade para que não se enxergue o produto da segregação.   UPP e especulação imobiliária A distribuição geográfica das ocupações policiais e da instalação dasUPPs expressa claramente a estratégia de garantir segurança públicapara determinadas área da cidade (Zona Sul, Centro, Tijuca e Barra daTijuca), enquanto a violência urbana se expande para as áreasperiféricas. Desde 2008, as UPPs foram para a Zona Sul (Santa Marta,Chapéu Mangueira, Babilônia, Tabajaras, Cabritos, Cantagalo e Pavão-Pavãozinho), para a zona portuária do Centro (morro da Providência) epara o eixo Tijuca (Salgueiro, Borel, Casa Branca, Chácara do Céu,Catrambi, Indiana, Morro da Cruz, Formiga, Turano, Matinha, Bispo eSumaré). A própria Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiroexplicitou a estratégia das UPPs: formar dois grandes blocos, um naZona Sul, outro na Grande Tijuca. O delegado Roberto Sá, subsecretárioda Secretaria de Segurança, afirmou à imprensa: “nosso projeto desegurança com as UPPs tem algumas variantes como, por exemplo, o fatoreconômico (as unidades ficam nas áreas onde está boa parte da riquezada cidade) e o de tempo (para formar novos policiais)” (O Globo, 11ago 2010). A prioridade não se refere somente às áreas mais ricas dacidade, mas também aos novos empreendimentos esportivos, turísticos eimobiliários, vinculados às Olimpíadas e à Copa, além do projeto PortoMaravilha. Como a política implementada tem privilegiado favelas localizadasnessas regiões, os trabalhadores pobres acabam sendo expulsos para asregiões distantes dos centros econômicos, reproduzindo a formaçãogeográfica de outras metrópoles, onde as camadas empobrecidas moram,quase sempre, na periferia.Assim, uma das principais críticas às UPPs diz respeito à chamada“remoção branca”. Pela elevação do custo de vida nos locais onde sãoimplantadas, acabam expulsando moradores, incapazes de arcar com osnovos preços, para outras regiões. Alguns levantamentos recentes apresentam dados da pressão imobiliárianas favelas e bairros adjacentes onde houve instalação das UPPs. Emmatéria recente da imprensa foram divulgados imóveis com valorizaçãode 80% na Tijuca, mas outras reportagens falam até em 400% devalorização de certos imóveis. Aluguéis de lojas na Cidade de Deusaumentaram 150% com a instalação da UPP. A favela do Batam ganhou umcondomínio grande de classe média. Já na Zona Oeste do Rio, as UPPs só foram para a Cidade de Deus, maispróxima à Barra da Tijuca e única favela de porte na Zona Oeste quenão era dominada por milicianos, e para o Batan, antes dominada pelosmilicianos que torturaram dois repórteres do jornal O Dia. Essaconstatação revela outro aspecto da atual estratégia de segurançapública: a complementaridade entre a política das UPPs e o domínio dasmilícias paramilitares. As milícias continuam se expandindo emJacarepaguá, na Zona Oeste e na Baixada Fluminense, à sombra daconivência do Estado e dos agentes policiais que atuam comomilicianos. A aliança entre grandes investimentos e as milícias pode serexemplificada pela presença de milícias armadas em Santa Cruz na áreade construção da Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA), umconsórcio formado pela empresa alemã Thyssen Krupp e a Vale do RioDoce. Diversas denúncias apontam que a empresa utiliza as milíciaspara vigiar barcos, expulsar pequenos barcos pesqueiros da proximidadedas instalações na Baía de Sepetiba, acuar os moradores locais quebrigam por indenizações pelas terras que a empresa quer comprar eameaçar os trabalhadores militantes das associações de pescadores e doFórum de Meio Ambiente da Baía de Sepetiba que vêm denunciando aviolência e os crimes ambientais. Essa repressão exercida pelasmilícias envolve ameaças de morte e assassinatos. As condições detrabalho impostas na CSA e o controle social exercido têm sidodenunciados, como a morte de um pescador, atropelado por umaembarcação da empresa, e de três operários da obra, esmagados por umguindaste.   “Cidadania de mercado”: serviços precários, aumento do custo de vida echoque de ordem A palavra “cidadania” é muito empregada para se referir à novacondição do morador das favelas com a chegada das UPPs. Mas aobrigação dos deveres sempre chega muito antes da conquista dosdireitos: a conta de luz, o fim do gato-net, a “lei do silêncio” queimpede a realização dos bailes funks, etc. Por outro lado, direitosbásicos como iluminação pública, que demorou a chegar no Santa Marta,as condições de moradia (ainda há casas caindo no Santa Marta),saneamento básico (na Babilônia, a ausência de um reservatório de águatem deixado as torneiras dos moradores secas), coleta de lixo (que nãochegou na Babilônia, mesmo depois de um ano de ocupação) são apenassintomas da falta de uma proposta democrática e participativa deurbanização. Por outro lado, o encarecimento do custo de vida da população já podeser verificado de diversas maneiras: em muitas comunidades ocupadas,os “gatos” na luz e na TV a cabo foram eliminados, sem que fosseinstituída nenhuma tarifa social, prerrogativa permitida por lei paraque os pobres paguem menos por determinados serviços. Diversas atividades econômicas estão acabando por conta das pressõeseconômicas e também da repressão através do chamado “choque de ordem”.Na Ladeira dos Tabajaras, a polícia proibiu a atividade de moto-táxis,sem maiores explicações. Mais de 30 bares foram fechados no Pavão-Pavãozinho, por estarem sem alvará. Em várias comunidades as UPPsestão fechando as lan houses, que garantiam um acesso barato àinternet. Tudo isso representa aumento de custos para os usuários dosserviços e desemprego para os profissionais antes envolvidos nosserviços locais. O crescimento das favelas mais antigas tem se dado pela verticalizaçãodas casas – construção em cima das lajes – e pelos anexos – os famosos“puxadinhos”. Dessa forma, a moradia é adaptada ao aumento da famíliaou a alguma atividade econômica realizada na extensão da própria casa.Porém, a colocação do “Posto de Orientação Urbanística e Social” – jáexistente no Morro Santa Marta e no Morro do Borel, mas previsto paraa maioria das favelas ocupadas – tende a restringir as soluçõespopulares para o problema da moradia, sendo mais um fator de aumentodos custos de vida da população pobre. Essa é a base social para a produção da “remoção branca”: com o tempo,o aumento do custo de vida promove a saída daqueles que não têmdinheiro para se manter nos morros. Os aluguéis ficam mais caros, apressão imobiliária eleva o preço dos imóveis e os moradores em piorescondições financeiras vendem suas casas por qualquer oferta. Ou seja,melhorias que por ventura sejam introduzidas nas favelas ocupadas porUPPs podem não ser apropriadas pela maioria dos atuais moradores. Essasituação expõe o nexo entre as UPPs e os empreendedores imobiliáriosque vão introduzir os morros ocupados no mercado imobiliário do Rio deJaneiro, aquecido pelos grandes eventos esportivos.   Autoritarismo e criminalização da resistência popular Um dos aspectos que a grande mídia busca enfatizar é que as UPPsrepresentam a chegada do Estado e da democracia às favelas. O “GloboOnline” criou inclusive uma página especial com o título Democracianas Favelas para reportar os “avanços democráticos” nas favelasocupadas. Antes da implantação das UPPs, o poder público organiza umareunião na qual o BOPE apresenta aos moradores as formas defuncionamento das unidades policiais. Essa reunião não tem porobjetivo ouvir reivindicações e propostas dos moradores, mas sim o deapresentar as novas regras às quais os moradores devem obedecer. Ésignificativo que nesse momento essa apresentação seja feita pelo BOPEe não por alguma secretaria estadual (o que denota a sua ausência).Estratégia que também começa a ser modificada em algumas áreas, mas noque se refere ao discurso e não à garantia efetiva de direitos, demelhorias estruturais das condições vida e moradia. Essa tentativa de mudança de imagem é reforçada pelas açõesideológicas de aproximação entre os policiais e os moradores,amplamente divulgadas pela mídia, como as aulas de violão dadas por umpolicial na Babilônia, a organização de um baile de debutantes no qualos policiais dançavam valsa, etc. Em primeiro lugar, a presença do Estado é vista unicamente como apresença da polícia, abstraindo-se diversos serviços públicos providospelo Estado que continuam ausentes das favelas. E a própria políciatambém esteve presente na favela durante todas as décadas de violênciaaberta entre polícia e traficantes, o que resultava nos tiroteios,balas perdidas, invasões de domicílio e execuções sumárias. A“sensação de segurança” dos moradores da favela ocorria justamente coma ausência da polícia, pois a presença significava ameaça deconfrontos. Por outro lado, a relação entre traficantes e policiaissempre foi ambígua: ao mesmo tempo em que mantinham o estado deconfronto permanente, estabeleciam também corrupção e favorecimento aopoder dos traficantes. Por esse ponto de vista, o próprio tráficorepresentava uma força coercitiva para os moradores da favela, comníveis combinados de coerção, consentimento e controle socialsimilares aos estabelecidos pelas milícias e pelo próprio Estado.Portanto, com as UPPs assim como antes com o tráfico, as condiçõespolíticas de “democracia na favela” continuam marcadas pela presençaostensiva de um aparelho repressor. O viés autoritário da ocupação das favelas é demonstrado pelo fato que“em nenhuma das comunidades, por exemplo, foram criados mecanismos departicipação popular efetivo nas decisões políticas”. A população dafavela é vista como politicamente passiva e qualquer forma deexpressão contrária às ações das UPPs é deslegitimada como sendo afavor dos traficantes. A “opinião pública” que legitima a política das UPPs é enviesada pelosgrandes meios de comunicação, nos quais “normalmente, é conferido ummaior peso à opinião dos moradores do asfalto nos arredores dasfavelas do que aos moradores policiados dia e noite”. Junto comsilenciamento das lideranças locais, o Governo e a grande mídiapromovem alguns agentes policiais a porta-vozes das favelas ocupadas:são eles que falam sobre as ações policiais, sobre o cotidiano dasfavelas e sobre os efeitos quase sempre benéficos da polícia para ascomunidades. Com tudo isso, os moradores ainda são expostos à infame pergunta: masera melhor com tiroteio e bala perdida? Como se a garantia decondições mínimas de sobrevivência na selva urbana tivesse comocontrapartida a aceitação a priori das imposições do Estado. Como se aprópria polícia não fosse também responsável pela violência a que eramsubmetidos os moradores das favelas, e como se essa violência nãoestivesse sendo mantida através de diversas outras formas.   Abusos policiais – além daqueles inerentes à própria existência dapolícia Dentre as ocorrências policiais mais registradas nas áreas de UPPsestá o desacato ao policial. O morador acusado tem como acusador opolicial militar. E, em todos os casos, a testemunha de acusação éoutro policial militar. Por outro lado, não há quase nenhum registrode abuso policial, apesar de ocorrerem em diversos casos. Por conta dessa situação, alguns moradores do Santa Marta, juntamentecom organizações de direitos humanos, produziram uma cartilha sobre aabordagem policial. O objetivo da cartilha foi conscientizar osmoradores dos seus direitos frente aos policiais. A cartilha foilançada em um evento com grande participação dos moradores, mas apolícia não quis se pronunciar sobre a iniciativa. O resultado foipercebido em pouco tempo: segundo os moradores, os policiaismodificaram seu comportamento nas abordagens, temerosos decontestações por parte dos moradores. Outro elemento autoritário da atuação das UPPs é a limitação dasatividades culturais, cuja expressão maior é a proibição dos bailesfunk. Os argumentos apresentados são vários: lei do silêncio (emboranenhum morador registre queixa), perigo de concentração de pessoas(pretexto comum utilizado pela ditadura), falta de segurança doslocais de baile, etc. Desde 2009, a Associação dos Profissionais eAmigos do Funk (APAFunk) tem organizado manifestações pela liberdadede expressão cultural. A mobilização ocorre através de rodas de funkdurante o dia, como as ocorridas na Cidade de Deus e no Santa Marta. APolícia Militar tentou de várias formas impedir a realização das rodasde funk, que só aconteceram após longa negociação.   Criminalização da pobreza e da resistência popular O aumento da repressão e da violência contra os moradores etrabalhadores das favelas e contra os movimentos sociais combativossão medidas que objetivam intimidar a população, conter os que jáestão lutando e impedir o crescimento da resistência popular. Esseprocesso tem sido muitas vezes expresso como a “criminalização dapobreza”, no sentido de que cada vez mais o trabalhador pobre, o debaixo salário, de trabalho precarizado, o subempregado e odesempregado são colocados como sinônimo de marginal e de bandido. Masalém desse significado imediato, podemos notar que a “criminalização”é direcionada a segmentos específicos do povo, geralmente as parcelasmais combativas e rebeldes. Isso não ocorre somente nas grandescidades, tem também seus correspondentes no campo – com acriminalização dos sem-terras e das ocupações de terra e de suasorganizações, como o MST. Com esse procedimento, retira-se alegitimidade da ação das classes, grupos, movimentos, partidos epaíses que combatem de frente as injustiças do capitalismo.   Exemplos da criminalização das favelas Em 2006, os moradores do Complexo do Alemão apresentaram diversasdenúncias sobre atrocidades e arbitrariedades cometidas pelo BOPEdurante a invasão da favela: extorsão, execução, espancamento, cortede água, luz e telefone, invasão de casas e comércio e torturas. Essasituação revela o terror generalizado sobre trabalhadores, idosos,crianças e mulheres imposto por ações policiais que continuamocorrendo no cotidiano de diversas favelas e são praticadas,justificadas e legitimadas pelo Estado em nome do combate ao “crimeorganizado”. Em 2009, o jovem Felipe dos Santos Correia de Lima, de 17 anos,morador da Baixa do Sapateiro (Complexo da Maré), foi executado no dia14 de fevereiro com um tiro na cabeça dado pela Polícia Civil na ruaem que morava. Após o sepultamento de Felipe, houve uma passeata naAvenida Brasil, que foi reprimida com violência pela PM, a balas deborracha e gás de pimenta, sob o pretexto de que se tratava de umamanifestação ordenada pelo tráfico. Não foi diferente em Paraisópolis, uma das maiores favelas de SãoPaulo. Em 2009, moradores do local fizeram uma manifestação após umaincursão da polícia que resultou na execução e na ocultação de cadáverpor parte da polícia. A manifestação foi duramente reprimida. Apósestes fatos, a polícia desencadeou mais uma edição da OperaçãoSaturação – na qual, homens do Comando de Operações Especiais (COE)invadem e ocupam ostensivamente as favelas, utilizando uniformescamuflados verdes, com cavalos, cães e helicópteros. Desde então,ocorreram diversas denúncias contra as atitudes bárbaras quecontinuaram a ser praticadas pelos policiais, entre elas: invasão decasa sem autorização judicial, xingamento, humilhação, destruição demóveis e objetos das casas, tortura psicológica nas crianças eespancamento. Esta repressão é justificada pelos meios de comunicação, que tentamnaturalizar a violência policial sobre os moradores, apresentando-acomo necessária para combater o “crime organizado”, indicando que afavela é local de bandidos e descaracterizando-a como local de moradiados trabalhadores e das camadas mais empobrecidas da população. Istoé, de uma força de trabalho barata e daqueles contingentes detrabalhadores que fazem parte da denominada “super população relativa”ou “exército industrial de reserva”. Cecília Coimbra, do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ, destaca que há umaprodução do convencimento e consentimento de que é preciso exterminaro pobre, “nunca se matou tanto como hoje ao se defender a vida.Extermina-se defendendo a vida”. Um levantamento realizado pela RedeContra a Violência reuniu declarações dadas por autoridades da área desegurança, deputados, colunistas, leitores, entre outros, em diversosjornais, textos e publicações diversas. Tais declarações demonstramcomo a ideologia dominante age cotidianamente para justificar enaturalizar o genocídio praticado nas favelas. Destacamos algumas abaixo:

• “Mesmo morrendo crianças, não há outra alternativa. Esse é ocaminho.” – Beltrame(http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI1998832-EI5030,00.html)

• “Não se pode fazer um omelete sem quebrar alguns ovos” e que “oremédio para trazer a paz, muitas vezes, passa por alguma ação quetraz sangue” – Beltrame (Jornal O Globo, 29/06/2007, pp. 14)

• “No momento que vidas são terminadas obviamente que nós não podemosdizer que foi bom… mas dentro do nosso ponto de vista operacional edentro daquilo que nós vínhamos planejando, [a operação] conseguiu semdúvida nenhuma desarmar grande parte do grupo que atuava naquelaárea.” – Beltrame (17/10/2007 – O Globo)

• “Os mortos e os feridos geram um desconforto, mas não tem outramaneira” – Luiz Fernando Côrrea (9/06/2007)

• “Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas,Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. Épadrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal” –Sérgio Cabral ( Veja, 31/10/2007)

• “No Complexo do Alemão está um foco de terroristas e de pessoas domal” – Sérgio Cabral(http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/05/17/295798976.asp)

• “A PM é o melhor inseticida contra a dengue. Conhece aquele produto,SBP? Tem o SBPM. Não fica mosquito nenhum em pé. A PM é o melhorinseticida social” – Coronel Marcus Jardim (“Folha de São Paulo” de17/04/2008). Hoje em dia, o discurso aparente nos meios de comunicação mudou. Aatuação das UPPs ganha a mídia como se fosse a solução para asegurança pública, substituindo aos poucos – em determinadas áreas – apolítica de confronto intensivo. Mas a ideologia que está por trás dasegurança pública é a mesma. Em 2007, a ação da polícia no Alemão, naCoréia e no Muquiço levou à morte de mais 60 pessoas em poucos dias.Nessa ocasião, a ação violenta precedeu os Jogos Panamericanos e aimplementação do PAC das Favelas. As UPPs não substituem a política deextermínio, elas se circunscrevem a uma parte específica da cidade,enquanto o confronto mais direto é deslocado para a periferia. Existeuma complementaridade entre a “ocupação pacificadora” na Zona Sul,Tijuca e Centro, a manutenção das antigas práticas na periferia e aprópria ação das milícias para o exercício do controle social dasclasses trabalhadoras. É visível que há uma significativa preocupaçãode mudança no discurso. A crise urbana que observamos nos dias atuais é uma expressão da lutade classes: o choque de ordem contra pequenos comerciantes etrabalhadores informais da cidade, as remoções das favelas – pelaforça do Estado ou do dinheiro –, a repressão e a criminalização dossegmentos com maior potencial de rebeldia contra a opressão sãomedidas que as classes dominantes lançam mão para manter a“governabilidade”, manter sob controle as classes dominadas, as“classes perigosas” e, assim, poder continuar a exercer sobre elas suaviolenta dominação e exploração. 1 Outro dado do IPP que chama atenção é o que diz respeito àsocupações em área de preservação ambiental. De acordo compesquisadores do Instituto, 69,7% das áreas construídas acima de 100mde altitude no município do Rio de Janeiro, ocupando áreas de morrose, em alguns casos, florestas, estão ocupadas pela classe média ealta. Apenas 30% destas áreas são de favelas. Observatório de Favelas.Muro nas favelas. Editorial, 2009. Este texto resultou de algumas discussões realizadas no CeCAC sobre asmudanças nas políticas urbanas e de policiamento, repressão e controlesocial, com destaque para as UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora,direcionadas a algumas comunidades e favelas da cidade do Rio deJaneiro. São apontamentos que não esgotam este complexo tema. Nós doCeCAC partimos da visão de que a sociedade em que vivemos écapitalista e sua principal característica é a exploração e dominaçãode classe, para garantir a produção de mais-valia e, a partir desseponto de vista, do ângulo das classes dominadas, tentamos realizar umaanálise das especificidade do tema.

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