Maria Rita Kehl (publicado hoje no Estadão)
Entre os três candidatos à Presidência mais bem colocados naspesquisas, não sabemos a verdadeiraposição de Dilma e de Serra. Declaram-se contrários para não mexer numvespeiro que pode lhescustar votos. Marina, evangélica, talvez diga a verdade. Sua posição étão conservadora nesseaspecto quanto em relação às pesquisas com transgênicos ou células-tronco.Mas o debate sobre a descriminalização do aborto não pode ser pautadopela corrida eleitoral.
Algumas considerações desinteressadas são necessárias, ainda quedolorosas. A começar pelo óbvio:não se trata de ser a favor do aborto. Ninguém é. O aborto é sempre aúltima saída para umagravidez indesejada. Não é política de controle de natalidade. Não écurtição de adolescentesirresponsáveis, embora algumas vezes possa resultar disso. É umaescolha dramática para a mulherque engravida e se vê sem condições, psíquicas ou materiais, deassumir a maternidade.
Se nenhuma mulher passa impune por uma decisão dessas, a culpa e a dor que elasente com certeza sãoagravadas pela criminalização do procedimento. O tom acusador dos quese opõem à legalizaçãoimpede que a sociedade brasileira crie alternativas éticas para que oscasais possam ponderarmelhor antes, e conviver depois, da decisão de interromper umagestação indesejada ou impossívelde ser levada a termo.
Além da perda à qual mulher nenhuma é indiferente, além do lutoinevitável, as jovens grávidas quepensam em abortar são levadas a arcar com a pesada acusação deassassinato. O drama da gravidezindesejada é agravado pela ilegalidade, a maldade dos moralistas e aincompreensão geral.
Ora, as razões que as levam a cogitar, ou praticar, um aborto, raramente sãolevianas. São situações deabandono por parte de um namorado, marido ou amante, que às vezesdesaparecem sem nem saber que amoça engravidou. Situações de pobreza e falta de perspectivas paraconstituir uma família ouaumentar ainda mais a prole já numerosa.
O debate envolve políticas desaúde pública para asclasses pobres. Da classe média para cima, as moças pagam caro paraabortar em clínicasparticulares, sem que seu drama seja discutido pelo padre e o juiz naspáginas dos jornais.
O ponto, então, não é ser a favor do aborto. É ser contra suacriminalização. Por pressões daCNBB, o ministro Paulo Vannuchi precisou excluir o direito ao abortodo recente Plano Nacional deDireitos Humanos. Mas mesmo entre católicos não há pleno consenso. Ocorajoso grupo das "Católicaspelo direito de decidir" reflete e discute a sério as questões éticasque o aborto envolve.O argumento da Igreja é a defesa intransigente da vida humana.
Pois bem: ninguém nega que o feto,desde a concepção, seja uma forma de vida. Mas a partir de quantosmeses passa a ser consideradouma vida humana? Se não existe um critério científico decisivo, sugiroque examinemos as práticascorrentes nas sociedades modernas. Afinal, o conceito de humano mudoumuitas vezes ao longo dahistória. Data de 1537 a bula papal que declarava que os índios doNovo Continente eram humanos,não bestas; o debate, que versava sobre o direito a escravizar-seíndios e negros, estendeu-se atéo século 17.A modernidade ampliou enormemente os direitos da vida humana, aodeclarar que todos devem ter asmesmas chances e os mesmos direitos de pertencer à comunidadedesigual, mas universal, dos homens.
No entanto, as práticas que confirmam o direito a ser reconhecido comohumano nunca incluíram ofeto. Sua humanidade não tem sido contemplada por nenhum dos rituaissimbólicos que identificam avida biológica à espécie. Vejamos: os fetos perdidos por abortosespontâneos não são batizados. AIgreja não exige isso. Também não são enterrados. Sua curta existêncianão é imortalizada numasepultura - modo como quase todas as culturas humanas atestam apassagem de seus semelhantes peloreino desse mundo. Os fetos não são incluídos em nenhum dos rituais, religiosos ou leigos, queregistram a existência de mais uma vida humana entre os vivos.A ambiguidade da Igreja que se diz defensora da vida se revela nacondenação ao uso da camisinhamesmo diante do risco de contágio pelo HIV, que ainda mata milhões depessoas no mundo.
A África, último continente de maioria católica, paupérrimo (et pour cause...),tem 60% de sua populaçãoinfectada pelo HIV. O que diz o papa? Que não façam sexo. A favor da vida e contra o sexo - penade morte para os pecadores contaminados.Ou talvez esta não seja uma condenação ao sexo: só à recente liberdade sexual das mulheres. Enquanto a dupla moral favoreceu a libertinagem dos bons cavalheiroscristãos, tudo bem. Mas aliberdade sexual das mulheres, pior, das mães - este é o ponto! - éinadmissível. Em mais de umdebate público escutei o argumento de conservadores linha-dura, de quea mulher que faz sexo semplanejar filhos tem que aguentar as consequências.
Eis a face cruel dacriminalização do aborto:trata-se de fazer, do filho, o castigo da mãe pecadora.
Cai a máscara que escondia a repulsa aosexo: não se está brigando em defesa da vida, ou da criança (que, emcaso de fetos commalformações graves, não chegarão a viver poucas semanas). A obrigaçãode levar a termo a gravidezindesejada não é mais que um modo de castigar a mulher quedesnaturalizou o sexo, ao separar seu prazer sexual da missão de procriar.
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